Tinham trabalhado arduamente durante todo o ano e, agora que receberam um pequeno aumento no magro salário da fábrica, resolveram comprar um rádio. Orgulhosos pela decisão entraram na loja e miraram atentamente as inúmeras marcas e modelos expostos nas prateleiras.
Nessa altura, relembraram-se das idas à D. Flaustina do n.° 11 para ouvir rádio. «D. Flaustina, podemos ouvir a caixa falante?» perguntavam timidamente. Depois foi o café do sr. António que dispunha, para regozijo dos clientes, de um aparelho radiofónico. Todas as noites era um corre-corre para casa para ir ao café, onde ficavam até às tantas da noite, tentando descobrir como uma caixa podia transmitir sons tão perfeitos.
A rádio tinha passado a ser o tema preferido das conversas nos intervalos da fábrica, nas passeatas de domingo pela baixa, onde, de nariz colado à vitrina, vislumbravam os "caixotes mágicos».
Agora, estavam dispostos a retirar um grande peso da carteira para partilhar do luxo enorme de ter rádio no domicílio; as suas caras retorciam-se de prazer, só de pensar no que as línguas mais afinadas do bairro iam dizer quando ouvissem, da rua, os sons inconfundíveis do rádio. Esfregavam cinicamente as mãos, só de visualizar a cena das velhas da rua a rogar, de joelhos no chão, permissão para ouvir um som mínimo do rádio.
Efectuaram a transacção e dirigiram-se para casa onde colocaram o rádio no melhor sitio possível, ligaram o mágico aparelho e ouviram a orquestra da rádio a tocar o Frank Sinatra. Como era bonito aquele som. Nessa noite ouviram rádio até às 3 da manhã, e, tal como previram, a casa estava com a lotação esgotada. As noites de Dezembro foram memoráveis: o rádio ligado, a casa cheia, os cobertores a cobrirem as pernas cansadas depois de um dia de trabalho; a animação fugaz; que vida maravilhosa que eles tinham!
A pouco e pouco a casa esvaziou-se, até que ficaram sozinhos, tal como antes. "O que é que aconteceu?», perguntaram, curiosos, ao sr. António, que se queixava do mesmo mal. «Ora, agora todos têm rádio», respondeu. Que desilusão, já todos tinham rádio! O que para eles foi uma luta incansável, até comprarem o aparelho, parecia ser agora um simples acto. Acender o rádio deixou, lentamente, de ser a festa de outrora, para se transformar num reflexo condicionado.
A vida continuou e apareceu outra caixa, desta vez com pessoas no seu interior; e a história repetiu-se. Idas a casa da D. Flaustina, ao café do sr. António, a compra do aparelho, reuniões de vizinhos, e a solidão, por fim, quando toda a vizinhança dispunha de televisão.»
"Muitos anos se passaram», disse-me o velhote que lia as suas memórias. «Os tempos mudaram; agora já existem gravadores de imagens, televisões que mais se assemelham a ecrãs de cinema, gira-discos com vários andares, máquinas que funcionam com discos fininhos...»
"Pois é», disse-lhe eu, «são os tempos a mudar, e, como já dizia Camões, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.»
«Está bem, está bem», resmungou.
Subitamente os olhos do velhote cintilaram, a cara abriu-se num sorriso enorme, as mãos começaram a tremer e, finalmente, disse-me com a voz trémula:
«Ontem vi o meu rádio, só podia ser o meu rádio, tão bonito, estava numa montra de uma loja de ferro-velho; e lá estava o Frank Sinatra a cantar "You must remember this, a kiss is still a kiss..."»
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