Monday, May 28, 2007

CRÓNICA DE UMA CAMPANHA FALHADA

um texto escrito há 18 anos

Não existe nada melhor no mundo do que acordar antes do despertador activar o seu ruidoso sistema. Ponho-me de pé e levanto os braços num aviso claro e sério de que já estou pronto para entrar em ac­ção na vida diária. Dez flexões e algumas distensões musculares depois olho para o espelho e reparo que, afinal, eu e o Ram­bo temos certas semelhanças, principalmente na original curva do lóbulo da orelha direita.

Tomo banho, como um pequeno-almoço apressado e saio para a movimentada rua. Esbarro contra um velhote que caminha cabisbaixo e me ameaça violentamente com a bengala de madeira, enquanto solta algumas exclamações de repúdio. Rapida­mente se junta um pequeno grupo de pes­soas na tentativa de descobrir alguma coi­sa que quebre a monotonia diária. Enquanto o velhote, que deixou cair os óculos, tenta descobrir a minha posição e fala, fu­rioso, com o poste da rua, as pessoas de­clamam frases feitas e lugares-comuns: que não tenho coração para os velhotes; que eu também irei lá chegar, etc., etc. Fi­nalmente deixo aquele pequeno grupo que momentos depois certamente se irá disper­sar e encaminho-me a passos largos pa­ra o comboio, que me irá levar até Cas­cais.

Logicamente que o objectivo é deli­ciar-me com uma atraente estada na praia para recuperar de um ano de duros esforços.

Chegado ao Cais do Sodré, dirigo-me ás máquinas de venda automática de bilhe­tes. Munido das moedas necessárias, co­loco-as no estreito buraco do engenho até satisfazer a quantia requerida. Sorri­dente, levo a mão à saída do bilhete, mas só sinto uma baforada de ar quente. Ape­sar de ser um indivíduo calmo e pacífico dou vários socos e pontapés na máquina para lhe mostrar o meu desprezo pelo pro­gresso da tecnologia, o que origina o aparecimento de um senhor de bigode farfalhudo e de uma barriga feita à custa de muita cerveja. Avisa-me do valor pecuniário do engenho. Reclamo e explico-lhe, delicada­mente, o sucedido.

Recebo do pitoresco homem uma resposta que me recuso a transcrever com receio de retaliações por parte dos responsáveis do Blogger. Compro o bilhete e dirijo-me para o com­boio. Apesar de ir toda a viagem com uma prancha de surf comodamente instalada na minha cabeça e de suportar um cheiro a suor que afasta qualquer desodorizante bem-intencionado, é com um sorriso que saio do comboio e olho o mar azul, num tom claro (portanto, azul, claro).

Com a mala na mão caminho para a praia. Mal chego reparo que me esqueci de reservar um lugar, pois a lotação do areal excede qualquer previsão lógica. Apesar deste aspecto de somenos importância começo a minha busca, não do ca­bo Bojador, mas sim do cabo do mar, nu­ma tentativa desesperada para resolver a minha situação.

Infelizmente, nunca tive vocação para descobridor e muito menos para dobrar cabos (principalmente quando eles são de aço) e tenho de me contentar com um pedaço de areal entre várias se­nhoras de certa idade e um grupo de crian­ças que se divertem a enterrar a cabeça umas das outras na areia, perante o olhar passivo das mães.

Estendo a toalha, deito-me e levo ime­diatamente com quilos de areia no corpo, proveniente dos putos. Levanto-me e falo com as mães deles. Elas informam-me que o comportamento das crianças (a que elas chamam diabolicamente de anjos) é originado por um complexo de Édipo, coa­dunado com um complexo complexado da sua mente.

Depois de tão subtil explicação, retorno para o meu local, onde me deito durante al­gum tempo. Depois de uma boa soneca ao sol, levanto-me e dirijo-me para o mar, mas depois de sete braços pisados, oito pernas esmagadas e uma mordidela no meu pé, por colocá-lo, despropositada­mente, numa cara incauta, desisto e deci­do-me a regressar, sem mais demoras, a casa.

Mais calmo, demoro três horas na esta­ção para apanhar o comboio. Desta vez, para minha alegria, já não viajo com uma prancha de surf, mas sim com uma cana de pesca a tresandar a peixe. Já farto de multidões, subo apressado as ruas que me irão levar a casa. No princípio da minha rua reparo num ajuntamento pouco usual de pessoas. Aproximo-me e vejo que este grupo se deve ao facto de o velhote, com quem eu esbarrei esta manhã, estar a refi­lar com o marco do correio. Enquanto algu­mas pessoas soltam os mais variados co­mentários, outras olham para o relógio e afastam-se do local, tal como eu, embora um pouco corado.

Pego na chave de ca­sa, ainda na rua e, mentalmente, passo um atestado de incompetência às multi­dões, que me estragaram o dia.

Quando meto a chave na porta de entra­da do prédio sinto o meu pé a apoiar-se em alguma coisa esquisita. Baixo-me e reparo que parti os óculos do velho. Subo e ador­meço, esquecendo-me do jantar.

1 comment:

André said...

Muito bom! Fartei-me de rir.