Monday, May 28, 2007

LEMBRAS-TE?

De todos os textos que escrevi entre os meus 16 e 21 anos, talvez este seja o meu preferido. 17 anos passados sobre a escrita destas palavras, e com uma filha de quase 11 anos, este é o texto que nunca me passaria pela cabeça alterar, talvez pelos sentimentos que o percorrem, e provavelmente por ser de um género que não era o mais habitual em mim.


Lembras-te?

Quando eu não era aquilo que sou,

Tinha pernas flácidas e pele a cheirar a la­vanda; balbuciava verdades indesmentí­veis e mentia sobre verdades desco­nhecidas.

Tinha um olhar doce, de uma melancolia delicada, cabelo penteado com mãos de encantar.

Braços estéreis, sonhadores, abertos pa­ra o futuro

medonho)

Lembras-te?

Quando eu não conseguia engolir os com­primidos,

mastigava-os)

Vivia a próxima primavera sem receios, não pensando que o Outono podia não chegar.

Chamava-te papá e ria desdentado; fazia asneiras tardiamente reconhecidas.

Dormia feliz com o urso de peluche ao meu lado...

Lembras-te do urso de peluche, não te lembras?!

Não?

Deixa estar! É natural

O GARRAFÃO PORTUGUÊS

Mais um que tem 17 anos:


O garrafão Português

Quem é que nunca se des­locou diligentemente para a praia popular mais próxima a fim de apanhar com um tre­mendo escaldão e en­controu uma alegre famí­lia a petiscar molemente à sombra de um ardente Garrafão a rebentar de uma mistura explosiva de branco-tinto absolu­tamente mortífera?

Ou quem é que nunca observou um grupo de simpáticos homens a mamarem copos atrás de copos, cujo recheio foi retirado de um modesto Garrafão de cinco litros enquanto batiam cartas batoteiras nas sebosas mesas das tascas?

Todos nós já presenciámos estas curio­sas cenas, fantasticamente comoventes e regadas. Mas quem é que já pensou no verdadeiro significado nacional e interna­cional do Garrafão?

Ninguém!

Ele é um objecto esquecido pelos inte­lectuais portugueses, pela Comunicação Social e, o que é pior, pelo poder político, que se recusa determinantemente a esta­belecer um estatuto condigno para este objecto tão apreciado pelos Portugueses.

É exactamente para promover este acto que eu me encontro estupidamente a es­crever este texto. Deste modo, a minha argumen­tação baseia-se em três pontos incontes­táveis e fulcrais, cujo conteúdo passo a explicar.

As três instâncias do ser

1) A estética platónica do corpo do objecto.

O Garrafão encontra uma das suas enormes qualidades no facto de ser um objecto encantadoramente estético. Ele fica bem em qualquer despensa, sala de jantar (com a Ceia de Cristo estrategica­mente colocada na parede frontal à mesa), cozinha ou até quarto, caso as assoalha­das do apartamento assim o determinem.

E um objecto moderno, virado especial­mente para a juventude, mas que visa atingir todos os escalões etários possíveis, aerodinâmico e prático, pois é facilmente transportável para qualquer lugar. É bara­to, com baixo custo de utilização e, o que está na moda, é recarregável.

2) 0 mundo supra-sensível como re­presentação da coisa em si

O Garrafão tem um significado muito especial para o Português.

Ele representa uma cadeia de ligações de amizade e fraternidade entre os habi­tuais possuidores deste celebérrimo objecto. Ele é um contributo inqualificável para a paz, harmonia e felicidade, que mais nenhuma outra realidade existente à face da Terra consegue dar. O Garrafão é um símbolo de unidade nacional e convi­vência democrática entre os habitantes da terra lusa, cuja força não pode deixar de ser reconhecida por parte dos máximos dignitários de Portugal.

O Garrafão é, resumindo este ponto com um vocábulo filosófico, o nómeno do povo português.

3) A racionalização das faculdades paradigmáticas do real.

O Garrafão obtém o máximo significado no seu aspecto cultural, tal como foi pater­nalmente reconhecido pelo Chefe de Esta­do do. O Garrafão é cultura!

Ele é utilizado pelos chamados filósofos do povo para adquirirem a inspiração ne­cessária de modo a realizarem a sua ac­ção humana. Teve um contributo conside­rável para a realização de máximas profa­nas, idealismos esquizofrénicos, filosofias morais e diários irreconhecíveis.

Os maiores representantes da cultura portuguesa facilmente se identificam com o Garrafão, e ele é catalisador de anima­das discussões de ideias e serões diletan­tes; ou seja: ele produz uma dinâmica cultural ímpar a um nível cosmopolita.

A fundamentação lógico-formal do ser

Como todas as análises e discursos, esta teve um prelúdio, uma exposição e terá uma conclusão lógica proveniente do atrás discutido e, como falei do Garrafão, acabarei a falar dele.

E concluo com uma miscelânea de pen­samentos humildes e sinceros, mas objec­tivos, de modo a lançar mais uma acha para a fogueira, tendo em vista a dignifica­ção do Garrafão. (E por aqui me despeço, que já me está a dar o sono.)

A — O Garrafão è sinónimo de qualida­de e quantidade, aliado a um preço imba­tível.

B — É alegria, amizade. cores berrantes e vistosas.

C — Corresponde à nossa identidade, principalmente no que se refere aos de palha, e modernidade, Europa, civilização no tocante aos de plástico.

D — E, essencialmente, quando nós gostamos dele, escrevemos desta ma­neira...

O VELHO RÁDIO

Isto parece a RTP memória, mas hoje deu-me para aqui. há 19 anos escrevi:


Tinham trabalhado arduamente durante todo o ano e, agora que rece­beram um pequeno aumento no magro salário da fábrica, resolveram com­prar um rádio. Orgulhosos pela decisão entraram na loja e miraram atenta­mente as inúmeras marcas e modelos expostos nas prateleiras.

Nessa al­tura, relembraram-se das idas à D. Flaustina do n.° 11 para ouvir rádio. «D. Flaustina, podemos ouvir a caixa falante?» perguntavam timidamen­te. Depois foi o café do sr. António que dispunha, para regozijo dos clien­tes, de um aparelho radiofónico. Todas as noites era um corre-corre para casa para ir ao café, onde ficavam até às tantas da noite, tentando des­cobrir como uma caixa podia transmitir sons tão perfeitos.

A rádio tinha passado a ser o tema preferido das conversas nos intervalos da fábrica, nas passeatas de domingo pela baixa, onde, de nariz colado à vitrina, vis­lumbravam os "caixotes mágicos».

Agora, estavam dispostos a retirar um grande peso da carteira para partilhar do luxo enorme de ter rádio no domicílio; as suas caras retorciam-se de prazer, só de pensar no que as línguas mais afinadas do bairro iam dizer quando ouvissem, da rua, os sons inconfundíveis do rádio. Esfregavam cinicamente as mãos, só de vi­sualizar a cena das velhas da rua a rogar, de joelhos no chão, permissão para ouvir um som mínimo do rádio.

Efectuaram a transacção e dirigiram-se para casa onde colocaram o rádio no melhor sitio possível, ligaram o mágico aparelho e ouviram a orquestra da rádio a tocar o Frank Sinatra. Como era bonito aquele som. Nessa noite ouviram rádio até às 3 da ma­nhã, e, tal como previram, a casa estava com a lotação esgotada. As noi­tes de Dezembro foram memoráveis: o rádio ligado, a casa cheia, os cobertores a cobrirem as pernas cansadas depois de um dia de trabalho; a animação fugaz; que vida maravilhosa que eles tinham!

A pouco e pouco a casa esvaziou-se, até que ficaram sozinhos, tal como antes. "O que é que aconteceu?», perguntaram, curiosos, ao sr. António, que se queixava do mesmo mal. «Ora, agora todos têm rádio», respondeu. Que desilusão, já todos tinham rádio! O que para eles foi uma luta incansável, até comprarem o aparelho, parecia ser agora um simples acto. Acender o rádio deixou, lentamente, de ser a festa de outrora, para se transformar num reflexo condicionado.

A vida continuou e apareceu outra caixa, desta vez com pessoas no seu interior; e a história repetiu-se. Idas a casa da D. Flaustina, ao café do sr. António, a compra do aparelho, reuniões de vizinhos, e a solidão, por fim, quando toda a vizinhança dispunha de televisão.»

"Muitos anos se passaram», disse-me o velhote que lia as suas me­mórias. «Os tempos mudaram; agora já existem gravadores de ima­gens, televisões que mais se assemelham a ecrãs de cinema, gira-dis­cos com vários andares, máquinas que funcionam com discos fini­nhos...»

"Pois é», disse-lhe eu, «são os tempos a mudar, e, como já dizia Ca­mões, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.»

«Está bem, está bem», resmungou.

Subitamente os olhos do velhote cintilaram, a cara abriu-se num sor­riso enorme, as mãos começaram a tremer e, finalmente, disse-me com a voz trémula:

«Ontem vi o meu rádio, só podia ser o meu rádio, tão bonito, estava numa montra de uma loja de ferro-velho; e lá estava o Frank Sinatra a can­tar "You must remember this, a kiss is still a kiss..."»

CRÓNICA DE UMA CAMPANHA FALHADA

um texto escrito há 18 anos

Não existe nada melhor no mundo do que acordar antes do despertador activar o seu ruidoso sistema. Ponho-me de pé e levanto os braços num aviso claro e sério de que já estou pronto para entrar em ac­ção na vida diária. Dez flexões e algumas distensões musculares depois olho para o espelho e reparo que, afinal, eu e o Ram­bo temos certas semelhanças, principalmente na original curva do lóbulo da orelha direita.

Tomo banho, como um pequeno-almoço apressado e saio para a movimentada rua. Esbarro contra um velhote que caminha cabisbaixo e me ameaça violentamente com a bengala de madeira, enquanto solta algumas exclamações de repúdio. Rapida­mente se junta um pequeno grupo de pes­soas na tentativa de descobrir alguma coi­sa que quebre a monotonia diária. Enquanto o velhote, que deixou cair os óculos, tenta descobrir a minha posição e fala, fu­rioso, com o poste da rua, as pessoas de­clamam frases feitas e lugares-comuns: que não tenho coração para os velhotes; que eu também irei lá chegar, etc., etc. Fi­nalmente deixo aquele pequeno grupo que momentos depois certamente se irá disper­sar e encaminho-me a passos largos pa­ra o comboio, que me irá levar até Cas­cais.

Logicamente que o objectivo é deli­ciar-me com uma atraente estada na praia para recuperar de um ano de duros esforços.

Chegado ao Cais do Sodré, dirigo-me ás máquinas de venda automática de bilhe­tes. Munido das moedas necessárias, co­loco-as no estreito buraco do engenho até satisfazer a quantia requerida. Sorri­dente, levo a mão à saída do bilhete, mas só sinto uma baforada de ar quente. Ape­sar de ser um indivíduo calmo e pacífico dou vários socos e pontapés na máquina para lhe mostrar o meu desprezo pelo pro­gresso da tecnologia, o que origina o aparecimento de um senhor de bigode farfalhudo e de uma barriga feita à custa de muita cerveja. Avisa-me do valor pecuniário do engenho. Reclamo e explico-lhe, delicada­mente, o sucedido.

Recebo do pitoresco homem uma resposta que me recuso a transcrever com receio de retaliações por parte dos responsáveis do Blogger. Compro o bilhete e dirijo-me para o com­boio. Apesar de ir toda a viagem com uma prancha de surf comodamente instalada na minha cabeça e de suportar um cheiro a suor que afasta qualquer desodorizante bem-intencionado, é com um sorriso que saio do comboio e olho o mar azul, num tom claro (portanto, azul, claro).

Com a mala na mão caminho para a praia. Mal chego reparo que me esqueci de reservar um lugar, pois a lotação do areal excede qualquer previsão lógica. Apesar deste aspecto de somenos importância começo a minha busca, não do ca­bo Bojador, mas sim do cabo do mar, nu­ma tentativa desesperada para resolver a minha situação.

Infelizmente, nunca tive vocação para descobridor e muito menos para dobrar cabos (principalmente quando eles são de aço) e tenho de me contentar com um pedaço de areal entre várias se­nhoras de certa idade e um grupo de crian­ças que se divertem a enterrar a cabeça umas das outras na areia, perante o olhar passivo das mães.

Estendo a toalha, deito-me e levo ime­diatamente com quilos de areia no corpo, proveniente dos putos. Levanto-me e falo com as mães deles. Elas informam-me que o comportamento das crianças (a que elas chamam diabolicamente de anjos) é originado por um complexo de Édipo, coa­dunado com um complexo complexado da sua mente.

Depois de tão subtil explicação, retorno para o meu local, onde me deito durante al­gum tempo. Depois de uma boa soneca ao sol, levanto-me e dirijo-me para o mar, mas depois de sete braços pisados, oito pernas esmagadas e uma mordidela no meu pé, por colocá-lo, despropositada­mente, numa cara incauta, desisto e deci­do-me a regressar, sem mais demoras, a casa.

Mais calmo, demoro três horas na esta­ção para apanhar o comboio. Desta vez, para minha alegria, já não viajo com uma prancha de surf, mas sim com uma cana de pesca a tresandar a peixe. Já farto de multidões, subo apressado as ruas que me irão levar a casa. No princípio da minha rua reparo num ajuntamento pouco usual de pessoas. Aproximo-me e vejo que este grupo se deve ao facto de o velhote, com quem eu esbarrei esta manhã, estar a refi­lar com o marco do correio. Enquanto algu­mas pessoas soltam os mais variados co­mentários, outras olham para o relógio e afastam-se do local, tal como eu, embora um pouco corado.

Pego na chave de ca­sa, ainda na rua e, mentalmente, passo um atestado de incompetência às multi­dões, que me estragaram o dia.

Quando meto a chave na porta de entra­da do prédio sinto o meu pé a apoiar-se em alguma coisa esquisita. Baixo-me e reparo que parti os óculos do velho. Subo e ador­meço, esquecendo-me do jantar.

A BRIGADA DO REUMÁTICO

Aqui vai um texto que escrevi há gloriosos 17 anos.


O sol estava radioso!!

D. Chica, D. Carlota, D. Mariazinha e D. Augusta tiveram o mesmo pensa­mento. Mal vislumbraram o dia que tinha acabado de nascer prepararam as rendas, vestiram os fa­tos de trabalho (avental por cima das batas), colo­caram, geometricamente, os alfinetes no cabelo, olearam com um copo de água o aparelho vocal, fe­charam energicamente as portas, desceram, cam­baleando, as escadas e, sincronicamente, para­ram junto do café do Sr José:

- Olá, velhas raposas — disse amigavelmen­te D. Chica.

- Corno as meninas estão bonitas! — excla­mou cinicamente D. Carlota, a líder do grupo em ter­mos de má-língua.

Vamos entrar no café? — sugeriu esfomea­da D. Mariazinha.

Boa ideia — apoiou D. Augusta, a mais ob­servadora do grupo.

Entraram e sentaram-se na mesa do canto mais remoto, para desta maneira obterem uma ob­servação global do café.

Então o que é que as meninas vão tomar? — perguntou com visível desinteresse o Sr José.

Um cházinho, meia torrada e um pastel de nata — responderam em coro.

O Sr José voltou com o pequeno-almoço, atirou o chá, torradas, e bolos para cima da mesa e afastou-se do grupo.

- Vocês viram o que eu vi? — perguntou D. Augusta.

- Ho, ho — responderam as outras três.

- Ah, se a mulher sabe! —disse D. Augusta.

- Mas a marca de batôn não pode ser da muIher? perguntou D. Mariazinha enquanto masti­gava gulosamente a torrada.

- Pode lá ser da mulher! A mulher nunca usou batônretorquiu D. Augusta, golpeando os argu­mentos de D. Mariazinha.

Ela gasta o batôn com outros homens! — afirmou, peremptoriamente D. Carlota.

— Ho, ho! — responderam as outras três.

Repentinamente D. Chica amaciou o farto buço, olhou por detrás dos enormes óculos D. Ma­riazinha, e disse enquanto bebia sofregamente a ultima gota do chá:

— D. Mariazinha, chegou-me aqui aos meus ouvidos que a sua neta anda grá...?

Anda quê?! — perguntou D. Mariazinha que começou a suspeitar da afirmação da compa­nheira.

— Anda grávida, sabe, aquilo que lhe aconte­ceu 12 vezes! — afirmou D. Chica que começou a excitar-se com a conversa.

D. Mariazinha olhou para as comparsas de mesa, e fixou a sua atenção na cara da D. Chica que se contorcia energeticamente.

Então, o que é que tem, a minha netinha es­tá de barriga e pronto. Também eu estive, também a minha filha, e pronto!! — exclamou D. Mariazi­nha, que começou a fazer renda a uma velocidade alucinante.

Só que a sua neta não tem aliança no dedi­nho, e tem apenas 17 anos — afirmou D. Chica, que tinha atingido o orgas­mo do prazer de maldizer.

D. Mariazinha parou de fa­zer renda, olhou para as companheiras, pegou na ponta da bata, limpou as lágrimas, levantou-se, e disse furiosa:

— Vocês são umas gralhas!!

D. Mariazinha saiu do café e, passados 15 minutos, entrou na sua casa, situada a cem me­tros.

Lá vai a raposa. Realmente, a neta é fresca é — disse D. Augusta, que transpirava com a violência linguística da cena.

— José, dose dobrada! — ordenou D. Carlota.

Às 6 horas da tarde foram para casa. Às 10 horas deitaram-se. Tinha passado mais um dia nas suas longas vidas.

No dia seguinte o sol estava radioso!

D. Chico, D. Carlota, D. Mariazinha, D. Augusta tiveram o mes­mo pensamento. Mal olharam para o dia que tinha acabado de nascer prepararam as rendas...